Por razões de gosto tenho nos últimos anos dedicado uma parte do meu tempo livre ao estudo do basquetebol, tentando enquadrá-lo, sempre que possível, numa perspectiva histórica.
Uma das fontes tem sido, evidentemente, o contributo fundamental e incontornável dos norte-americanos, os pais do jogo e seus dominadores quase em absoluto até à relativamente pouco tempo. Tenho também estudado paralelamente a história do basquetebol francês que foi, pelo menos em termos cronológicos, um dos primeiros a importar o jogo para o seu território, em 1893, através do professor de Educação Física Melvin Rideout. Assinale-se que este professor estagiou e aprendeu o jogo em Springfield, na escola de formação do YMCA. Quanto ao basquetebol francês, o conhecimento que tenho do idioma permitiu-me aceder às ideias inovadoras e interessantíssimas que um grupo de treinadores franceses tem vindo a desenvolver, desde meados do século XIX, e que merece, na minha opinião, ampla divulgação.
Hoje trago-vos algumas reflexões, pondo em paralelo alguns aspectos das duas realidades históricas: a norte-americana e a francesa. Relativamente às décadas iniciais do século XX, o meu conhecimento acerca do basquetebol americano, da forma como ele era jogado e ensinado, não é tão substancial quanto eu gostaria. Conhece-se a descrição sucinta dos jogos iniciais, as suas treze primeiras regras que foram modificadas e em poucos anos dilatadas para mais de vinte, mantendo no entanto o seu núcleo fundador e o espírito do jogo. Encontrámos esses relatos no livro que Naismith escreveu e que foi editado em 1941 (J. Naismith, 1941), assim como no opúsculo que ele e Luther Gullick editaram, ainda no século XIX (J. G. Naismith, Luter, 1894). Sabemos também que pouco tempo depois do primeiro jogo masculino, as mulheres se estrearam na modalidade, sendo Senda Berenson-Abbot, a sua alma mater ao escrever as primeiras regras adaptadas. Existem também relatos de que bem cedo houve jogadores e equipas a optar por práticas profissionais, ganhando dinheiro desse modo, algo que Naismith sempre se recusou a fazer, nunca tendo patenteado o seu jogo nem ganho um cêntimo com ele. Aliás, as suas dificuldades económicas, designadamente no período da grande depressão, foram imensas, tendo hipotecado por duas vezes a sua casa. Só com a ajuda de treinadores seus amigos conseguiu financiar a sua ida aos jogos olímpicos de Berlim, em 1936, onde o basquetebol se estreou oficialmente. É também do conhecimento geral que as universidades depressa começaram a criar as suas equipas representativas. As universidades e as muitas filiais do YMCA foram os grandes veículos promotores da modalidade por todo o país. Internacionalmente, além das filiais do YMCA espalhados pelo mundo, um outro vector importante de expansão do basquetebol foi o dos contingentes de tropas americanas estacionados em territórios intervencionados militarmente. Isso aconteceu, por exemplo na Europa, no período da primeira guerra mundial.
Através da leitura de livros de treinadores antigos, recentemente falecidos (Newel & Nater, 2008; Wooden & Nater, 2006), ou de outros autores mais recentes que se interessam pela história do jogo (Olivera Betrán, 1984; Olivera & Ticó, 1993) pudemos encontrar alguma matéria sobre a história técnica e táctica do jogo, interligada com a evolução das regras, dos materiais de jogo e outras temáticas conexas. (Já escrevemos anteriormente aqui no Planetabasket sobre esas matérias.) Desse modo pudemos aflorar algumas ideias trazidas para o basquetebol por grandes treinadores americanos de basquetebol, da primeira metade do século XX. Referimo-nos, entre outros, a Forrest “Phog” Allen – considerado o pai do treino, no basquetebol - Amos Alonzo Stagg (famoso treinador de futebol americano), Ward Lambert e o famoso treinador e prolixo escritor, Clair Bee. Para pena nossa pensamos não ter conseguido ainda ter lido bibliografia suficiente sobre esses tempos e essas latitudes. Temos no entanto a convicção de que eles foram decisivos para o basquetebol, para a sua cultura muito própria, e que neles estão contidos muito dos segredos do jogo. Crentes, como somos, na força e no impacto da prática na evolução dos fenómenos humanos e no surgimento das teorias, só poderíamos ter como hipótese relativamente segura, que a generalização e qualidade das práticas (e dos treinadores) do basquetebol americano, jogou um papel decisivo desde muito cedo na evolução da modalidade. O basquetebol norte-americano dominou a prática do jogo e dominou-o também teoricamente. Se por vezes há desfasamentos entre estes dois tipos de planos, como todos nós sabemos, sempre foi evidente, para quem esteve atento, que da pátria do basquetebol vieram não só os melhores exemplos de jogadores e de equipas, como os também os melhores modelos teóricos acerca dessa mesma prática. Os norte-americanos, como muito bem realça Jacques Legrand (2005), sempre foram os grandes inovadores do Basquetebol, com as “técnicas” e as “tácticas” novas, geralmente, a serem produto “made in USA”.
No continente Europeu, uma das nações com grande tradição na modalidade, das primeiras a jogá-lo, foi a França, dois anos após a sua invenção. No entanto houve que esperar os inícios dos anos vinte para que se verificasse um entusiasmo e desenvolvimento sustentado. O basquetebol francês apresentou algumas peculiaridades. Algumas regras, aplicadas só em França, e o facto de ser um desporto jogado em campos exteriores devido a problemas de ordem sanitária, foram factores de algum atraso na evolução qualitativa da modalidade. No entanto e apesar disso, em meados do século XX, a França podia considerar-se quanto a resultados uma potência no basquetebol internacional. Defrontou os EUA em 1948, nos jogos olímpicos de Londres, e conquistou a medalha de prata. Pelo conhecimento que temos da bibliografia existente sobre o basquetebol francês, pensámos que ele merece ser conhecido pelos amantes da modalidade (Bosc, 1999a, 1999b, 1999c), já que nos pode dar lições importantes. A partir do seu espírito cartesiano, os franceses, após terem ultrapassado uma fase inicial do jogo pautado pela desorganização, pelo individualismo repentista e marcado pelas acrobacias e contra-ataques, - estilo de jogo a que um jornalista do tempo cunhou com o nome de “ripopo”, - enveredaram por um jogo intelectualizado e robotizado. Nesse tipo de jogo exerceu uma influência considerável a tentativa de cópia das “combinações” existentes nos livros provenientes da pátria do basquetebol. Se este espírito de cópia e de racionalização exacerbada só poderia levar a consequências indesejadas para os jogadores e para o jogo, houve no entanto uma reacção colectiva importante, ainda que minoritária. Essa reacção partiu de um grupo de treinadores, professores e jogadores franceses, ligados à modalidade, que conseguiu elaborar uma proposta alternativa extremamente interessante e de uma modernidade surpreendente, dado que nos referimos à década de cinquenta do século XX. Na nossa opinião, este grupo foi mais longe, em certos aspectos do tratamento teórico e pedagógico do basquetebol, do que os seus próprios mestres americanos. E pensamos que o conseguiram por duas ordens de razões. A primeira residia no facto de partirem de concepções filosóficas mais flexíveis e penetrantes do que os americanos, que, grosso modo e a nível teórico, sempre estiveram demasiado presos a concepções pragmáticas. Por outro lado, a situação objectiva dos treinadores americanos fazia com que eles não tivessem que “perder” tanto tempo com a formação dos jogadores, tal era a quantidade de candidatos a fazerem parte das equipas representativas. Damos como exemplo ilustrativo, as palavras de Pete Newel, citado em Michel Rat (1966), segundo o qual os treinadores americanos dispunham da possibilidade de escolher jogadores que já sabiam ler o jogo e que tinham os processos perceptivos e decisionais bem desenvolvidos. Compreende-se assim a concepção de alguns treinadores, principalmente alguns mais antigos, segundo os quais os jogadores “nascem” e não se fazem. A realidade nos EUA fazia com que, de facto, os jogadores “nascessem” primeiro, e fossem escolhidos posteriormente, num casting a preceito. Depois bastava burilá-los a partir desses pressupostos preciosos que já traziam de base. Esquecia-se que, no entanto, o tal “nascimento” era produto de muitas horas de treino livre, responsáveis pelo desenvolvimento de muitas competências de jogadores potencialmente talentosos. O contrário acontecia noutras nações, designadamente em França, em que o leque de escolha de jogadores não era igual ao dos americanos. A necessidade e prioridade nessas paragens era a de formar jogadores perante a quantidade diminuta de candidatos. E foi isso que levou alguns dos tais professores e treinadores referidos, a verificar que estes processos aparentemente naturais, como a “visão” de jogo, eram formáveis. E elaboraram para isso dispositivos e princípios pedagógicos inovadores. E foi aqui que foram mais longe que os mestres. Assinalemos no entanto que muitos “treinadores” actuais continuam a pensar à “antiga americana” e, quando não dispõem de escolha, em vez de ensinarem e desenvolverem os seus jogadores, amaldiçoam-lhes a genética ou a falta de jeito.
Continua na próxima semana
Bosc, G. (1999a). Une histoire du basket-ball français... 1893-1966 (Vol. I). Paris: Presses du Louvre.
Bosc, G. (1999b). Une histoire du basket-ball français... 1966-1990 (Vol. II). Paris: Presses du Louvre.
Bosc, G. (1999c). Une histoire du basket-ball français... 1990-2000 (Vol. III). Paris: Presses du Louvre.
Legrand, J. (2005). Basket-ball: enseigner à partir de l'évolution historique du jeu. In J.-M. Legras (Ed.), Vers une technologie culturelle des APSA (pp. 203-229). Paris: Vigot.
Naismith, J. (1941). Basketball: its origin and development. New York: Association Press.
Naismith, J. G., Luter. (1894). Basketball. Springfield: Spalding's Athletic Library.
Newel, P., & Nater, S. (2008). Playing big. The definitive guide to modern post play. Champaign, IL: Human Kinetics.
Olivera Betrán, J. (1984). 1250 ejercícios y juegos en baloncesto. (Bases teóricas y metodológicas. La iniciación). Barcelona: Editorial Paidotribo.
Olivera, J., & Ticó, J. (1993). Génesis y etapas evolutivas del baloncesto como deporte contemporâneo. Tablas cronológicas (1891-1992). Apunts(34), 6-42.
Rat, M. (1966). Enseignement d'un stage avec un entraîneur américain de Basket-ball. Revue EPS(78), 93-96.
Wooden, J., & Nater, S. (2006). John Wooden's UCLA Offense. Champaign, IL: Human Kinetics.