A concepção do exercício
 
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A concepção do exercício

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Ettore MessinaRecentemente, ao ver em video disponível na net o treinador italiano Ettore Messina a expor a sua concepção de ensino das acções de jogo,

lembrei-me de concepções que outros treinadores apresentaram em meados do século passado relativamente ao mesmo tema.

Comecemos no entanto por descrever a concepção de Messina. Segundo ele o ensino deve passar por três fases. Primeiro realiza-se a acção em “câmara lenta”, podendo eventualmente marcar fases ou pontos da execução. Depois, num segundo tempo, repete-se a acção até que o jogador a consiga realizar “sem pensar”. Por último, na terceira fase cria-se stress na acção, através da exigência de maior rapidez de execução, de melhor percentagem de acerto ou com pressão “psicológica” acrescida. Messina exemplificou a sua teoria com o ensino do lançamento. Primeiro marcou os três momentos essenciais dessa acção: posicão inicial; armar o lançamento; lançar. Para ele, só depois de adquirida a mecânica se deve repetir o gesto correcto de modo a assimilá-lo e a chegar a fazê-lo “sem pensar”. Por último deve-se “stressar” o lançamento, através das três formas acima apontadas. Queimar etapas estraga tudo, diz Messina. E conclui que não é com 19 anos que o jogador vai corrigir uma técnica incorrecta de lançamento que foi sedimentando até aí nos anos anteriores.

Messina fez-me lembrar duas concepções de ensino/exercício que foram apresentadas nos anos 50 e 60 do século XX. Uma de Raymond Gratereau e outra de Robert Mérand, ambos treinadores franceses de basquetebol mas também teóricos do ensino dos jogos desportivos colectivos em geral.

Na década de cinquenta Gratereau escreveu que:
“- O elemento a estudar é inicialmente “despido” e simplificado…
-... depois, progressivamente, complicado por condições de execução, tais como: rapidez (em competição, por exemplo), elementos anexados, presença de adversários.

Esta segunda etapa permite ao professor não só julgar o valor do automatismo adquirido, como também conduzir os alunos rapidamente às condições reais de jogo.” (Gratereau, 1955, p. 2).

A concepção do exercícioRelativamente ao conteúdo destas ideias de Gratereau, podemos desde logo salientar que o pano de fundo de toda a montagem do processo de ensino e o que se pretende realmente melhorar é a capacidade de jogo, daí o apontar a necessidade de chegar rapidamente às condições reais desse mesmo jogo. Os exercícios progressivos e as fases por que tem de passar só têm significado em função desse fim e não possuem um valor em si. Gratereau, no entanto, devido às suas prescrições como formador de professores de Educação Física dava larga saliência aos exercícios técnicos em formações ordenadas, e é ainda hoje reconhecido como um dos defensores do “tecnicismo”.

“O exercício é o meio de concentrar o jogador sobre o que aparece como essencial, em relação com o tema escolhido proveniente da análise da competição” (Vandevelde, 2007).

Outro exemplo de concepção, mais detalhada e complexa, é a da “teoria do exercício” de Robert Mérand (1966). Aí a progressão do exercício processa-se em cinco fases que vão desde a aprendizagem da estrutura do exercício até a sua realização em alta velocidade, passando pela afinação do seu controle sensório-perceptivo-motor, pelo encadeamento dos sinais e pela diversificação das respostas motoras.

Desenvolvamos o conteúdo dessas cinco fases:

  • na primeira o que se pretende é aprender o dispositivo e o mecanismo do exercício, isto é a “estrutura do exercício, a circulação da bola e dos jogadores” (Mérand, 1966);
  • na segunda o que se pretende é “aprender a fazer jogar à estrutura o seu papel e sobretudo a não deixar compensar esta falta pelo controle visual. Os jogadores, estando o exercício a funcionar, têm tendência a verificar, usando a visão, se ele se desenrola correctamente, se as diferentes tarefas estão a ser asseguradas. A eliminação deste controle visual é necessário pois na etapa seguinte a vista será utilizada para outros fins. Ela não é possível a não ser por uma representação mental a todo o momento da estrutura de conjunto.”;
  • na terceira há a “aprendizagem de grupos de sinais ligados às tarefas e aprendizagem da cascata de sinais, isto é, da passagem de uma tarefa a outra”;
  • na quarta dá-se o “aperfeiçoamento da resposta motora”;
  • e por fim, na quinta fase, através do “aumento da velocidade de execução até à destruição da coordenação” possibilita-se o teste da “fragilidade da aprendizagem”.

Relativamente às situações de aprendizagem, o que inclui também os exercícios, Mérand, no artigo de três alunos seus que realizaram uma experiência pedagógica num liceu (Dufour, et al., 1961) diz que “uma situação de aprendizagem deve sempre colocar um duplo problema: opção táctica e técnica.” Estes exercícios são “retirados do jogo”, o que é visível pela sua estrutura e conteúdo.

No entanto, como bem chama à atenção Vandevelde, (2007), uma autora que investigou a fundo a biografia profissional de Mérand, se este recurso a exercícios “retirados do jogo” é uma das inovações mais importantes inspiradas em Mérand, não deixa também de ser uma das mais difíceis de penetrar nas práticas quotidianas. De facto concordamos plenamente com esta opinião. Esta forma de conceber os ditos exercícios retirados do jogo requer da parte dos educadores/treinadores uma fina sensibilidade pedagógica que só é acessível a quem conheça muito bem o jogo e os comportamentos situados dos jogadores. Ainda relativamente a este temática do exercício, alguns exemplos de aplicação simplificada do esquema acima exposto, aplicadas a vários desportos, encontram-se em algumas publicações (Goirand, Journet, Marsenach, Moustard, & Portes, 2004). Aí a questão principal é a estrutura espacial do exercício ser retirada do jogo, dando sentido e significado ao exercício, o qual se realiza sem oposição e depois com oposição. Tal estrutura serve para, fundamentalmente, construir as habilidades motoras possíveis que são soluções concretas para os problemas do jogo, duma forma progressiva e adaptada.

Voltando depois ao jogo, dadas as semelhanças entre o exercício e a situação do jogo de onde foi retirada e dada a forma variada, progressiva e situada como as soluções motoras foram trabalhadas espera-se um transfert positivo real. Refira-se que esta estrutura do exercício foi também utilizada noutros desportos que não os desportos colectivos, como por exemplo na Ginástica Desportiva.

Os exercícios são uma das ferramentas práticas do treinador, não a única. Um outro grupo de ferramentas é composto pelas várias formas de jogo: dirigido, condicionado, formal; jogo em formatos reduzidos ou totais. Aliás, pode-se dizer que as formas de exercício e de jogo constituem um continuum, que vai do exercício mais analítico ao jogo mais parecido com a competição formal, havendo até formas de preparação que tentam submeter os jogadores a condições mais duras do que aquelas que eles encontrarão na competição normal.

Saber explorá-los – aos exercícios - naquilo que eles podem dar é um valor em si para os treinadores. E ter uma concepção do exercício que os integre no todo da preparação dos jogadores e equipas faz com que o treinador, mais do que um consumidor de exercícios, seja um conceptor, capaz de criar e adaptar os exercícios e jogos que que os seus jogadores precisam para aprender melhor.

Dufour, P., Tersac, C., & Rat, M. (1961). Une expérience pédagogique en basket. Revue EPS(56), 53-58.
Goirand, P., Journet, J., Marsenach, J., Moustard, R., & Portes, M. (2004). Les stages Maurice Baquet. 1965-1975. Genèse du sport de l'enfant. Paris: L'Harmattan.
Gratereau, R. (1955). Séries de exercícios para a iniciação e o treinamento do basket-ball. Belo Horizonte: Diretoria de esportes de Minas Gerais.
Mérand, R. (1966). Structure d'un exercice de tir au panier en course. Revue EPS(79), 31-35.
Vandevelde, M. (2007a). Éducation physique et basket-ball.
Robert Mérand: un regard neuf sur l'activité de l'élève. Paris: Nouveaux regards / Éditions Syllepse / Centre EPS et Société.

 

 


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