Nesta semana trago-vos o que considero uma verdadeira pérola. Consiste na tradução que fiz de um texto de Robert Mérand,

datado de 1947, em que se mostra uma nova concepção dos jogos desportivos colectivos. Vem na sequência do que venho a referir como inovador e de excelência por parte de um grupo de treinadores franceses desde a década de 40 do século XX. Serve-lhe de ilustração.

Mérand foi membro desse grupo e foi também um dos professores de Educação Física mais inovadores e marcantes da segunda metade desse século. Faleceu no ano passado com 90 anos. Traduzir um texto seu, tornando-o acessível aos companheiros do Planeta Basket é uma espécie de homenagem que lhe faço e um prazer.

Espero que gostem tanto da sua leitura como eu.

A evolução desportos coletivos - O princípio “do corpo obstáculo

Nós abster-nos-íamos de tomar a palavra se o ensino dos Desportos Colectivos, não fosse frequentemente diminuído, alterado, ou falseado pelas interpretações tradicionais que se dá da técnica e da táctica.

De todas as partes, vozes autorizadas sublinham que é necessário alterar a ideia que se faz correntemente destas duas noções:

“O calcanhar de Aquiles do futebol francês, é o controlo incompleto da bola.” Gabriel Hanot.

“Os basquetebolistas franceses fazem maus passes. ” Emile Frezot.

“Os nossos andebolistas não têm ainda o sentido do jogo dos jogadores austríacos. ” Raymond Boisset.

Porquê este controlo incompleto da bola? Os maus passes? Um sentido do jogo insuficiente?

Porque, sempre que se pensa em técnica ou táctica, se analisa idealmente as coisas, para maior satisfação da nossa razão. Omite-se mera e simplesmente aquilo que a experiência dá.

É por isso que “a técnica” é apenas uma descrição - extremamente detalhada, é verdade - dos gestos que pode realizar um homem, com uma bola, num regulamento próprio de cada Desporto Colectivo.

É por isso que, de acordo com “a táctica”, os membros de uma equipa fazem apenas exactamente o que é necessário fazer; as combinações representam fases de jogo bem recortadas, onde tudo é disposto o mais parcimoniosamente possível, com o propósito de um desenlace feliz.

Mas, realmente, no jogo, faz-se uma multidão de gestos supérfluos, não há apenas situações nítidas; não se passa nada também tão simplesmente, nem tão completa, nem tão belamente que quereríamos.

Há distância do jogo vivo ao jogo seco, que “os técnicos” compõem com elementos bem recortados, bem arranjados (recepção - dribble - passe - lançamento, etc.…), e onde cada jogador não está apenas ligado a outros jogadores, mas coordenado a este Todo que forma a Equipa.

Há distância, porque “técnicas” e “ tácticas” são reconstruções que omitem um elemento do jogo tão essencial como o jogador, a bola e o parceiro. Este elemento é: o adversário.

Pensa-se demasiado frequentemente ainda que as dificuldades encontradas pelos jogadores na utilização da bola vêm unicamente da bola. Os métodos que prevalecem, durante as sessões de iniciação dita técnica, consideram apenas o casal: jogador-bola.

Ora, se existe efectivamente um casal sobre o terreno, é o formado pelo jogador e o seu adversário.

É este casal que “joga a bola”. A recepção, o dribble, o passe, o lançamento são apenas os resíduos de duas acções opostas: a do atacante e a do defensor, - o atacante “o usufrutuário” momentâneo da bola.

Em outros termos, os nossos “técnicos” viram unicamente o caso do jogador desmarcado. É por isso que encontramos inevitavelmente nos seus comentários dos jogos internacionais: “Nada aprendemos em técnica.”

Obviamente, enquanto o elemento “adversário” é mais ou menos  negligenciado, não temos nada a aprender.

Mas quando o jogador é marcado - caso mais frequente - a noção do casal “jogador-adversário” torna-se uma realidade. Então, aparecem “o controlo incompleto da bola, os maus passes, um sentido do jogo insuficiente”.

Porque “o nosso manejo de bola” tem em conta apenas a bola, os nossos passes dão apenas conta do parceiro, o nosso sentido de jogo tem em conta apenas “os buracos” (ausência de adversário).

Falta-nos ainda estudar a técnica da bola em função do adversário; a passagem ao parceiro, elemento de um casal; o sentido de um jogo onde o adversário é uma realidade presente.

Falta introduzir no nosso ensino dos Desportos Colectivos o princípio “do corpo-obstáculo”.

Os técnicos consideram o corpo como um organismo articulado, variando infinitamente as combinações de movimentos. O princípio “do corpo-obstáculo” não contesta esta maneira de ver. Afirma simplesmente que a eficácia “do corpo-organismo articulado” é necessariamente ligado à noção de corpo que representa uma massa, ocupando um volume determinado.

É assim que, no casal “jogador-adversário”, o elemento “atacante” apenas desenvolve plenamente a sua técnica se coloca o obstáculo: a massa do seu corpo, entre o elemento “defensor” e a bola.

É assim que no fim de um bom passe, o parceiro pode receber a bola, “a massa do seu corpo colocada entre seu adversário e a referida bola”.

É assim que a acção defensiva de um jogador toma qualquer seu sentido apenas se a massa do seu corpo é de antemão colocado como obstáculo entre a zona de terreno a proteger e o adversário a neutralizar.

É assim, enfim, que a desmarcação, de possível que é no jogo improvisado, torna-se provável no jogo concertado onde a massa do corpo de um parceiro, colocado como obstáculo, pára ou contraria a corrida de um adversário.

A noção de «corpo obstáculo» pode então ser elevado ao nível de princípio. Nós a encontramos nas múltiplas formas que reveste a actividade de um jogador, e a variedade dos termos que o uso consagrou, tais como : protecção, lado aberto, bloqueio, tesoura, cruzamento, enquadramento defensivo, etc… não nos deve deixá-lo perder de vista.